Um viva à gula!!!
Desde a minha mais tenra idade, minha mãe percebera que eu não tinha nenhuma habilidade para prendas domésticas. Minhas paixões eram outras: ler, sonhar, me encantar e desistir, estudar, nadar e... espiar a cozinha. Sempre. Neta de imigrantes sírios e filha de um português legítimo, ficou fácil me apaixonar pela gastronomia de ambos os lados. Minhas raízes eram muito mais fortes quando o assunto era cozinha. A arrumação da casa... só quando minha genitora proferia alguns gritos. Relutante, eu ia. Inevitavelmente, sob protestos!
Dona Nair, minha mãe |
Com a proximidade de minha avó materna, analfabeta nos dois idiomas, mas um verdadeiro monstro sagrado na cozinha, cresci em meio a tudo o que inspira o universo árabe: alguns costumes, música, educação e, claro, a gastronomia, ou melhor, a boa gastronomia. Com minha avó, dona Dib Naif – popularmente chamada de dona Diva – tive o primeiro contato com as especiarias árabes: as pimentas, noz moscada, hortelã seca e fresca, canela, além de uma infinidade de sabores, cores e aromas. Não me lembro de minha avó à beira de um fogão fritando um bife com batatas fritas, para ser acompanhado por um belo prato de arroz e feijão. Mas me recordo daquela figura carismática, de pele muito alva, rosto vincado, no auge de seus mais de 80 anos, preparando quibes – sim, no plural. Quibe assado, cru, de batata, frito, na coalhada. Aliás, a coalhada era singular: não era apenas a fermentação do leite. Era a arte de fazer um simples litro de leite se transformar num bálsamo, num alimento verdadeiramente sagrado. Iogurte para coalhar o leite? Nem pensar. Tinha que ser o coalho, feito a partir da primeira tirada da coalhada anterior. E se não tivesse, era preciso percorrer a colônia árabe, atrás de algum patrício generoso que pudesse fazer a “doação”.
Sucessora habilidosa e talentosa de minha avó, minha mãe fez direitinho a lição de casa, um pouco tardiamente. Ao casar, não sabia fritar sequer um ovo. A única iguaria a que se dava ao trabalho era um pudim de leite condensado, preparado quase que diariamente para meu pai, a fim de compensar a falta de algo mais substancioso. A farra do pudim, entretanto, durou pouco. Algum tempo depois do enlace matrimonial, meu pai comprou um bar, onde se serviam... refeições. Adivinhem quem foi comandar a cozinha: minha mãe. Escola melhor não havia. Em pouco tempo, minha mãe fez aflorar o talento nato, herdado pela minha avó.
Eu já era uma pré-adolescente quando conheci a família – portuguesa, com certeza – de meu pai. Difícil eleger qual das minhas tias tem a mão mais santa. Receitas de bacalhau já provei várias e a grande maioria é de comer rezando. E não é apenas bacalhau. Tudo o que elas fazem fica incrivelmente delicioso. Tenho uma teoria para isto. Para cozinhar, o dom e a técnica são tão importantes quanto o prazer. Nenhuma outra atividade exige tanto prazer quanto cozinhar. Alimentar o corpo alimenta a alma. Por isso se torna um ato tão significativo e emblemático.
Bem, com toda esta veia gastronômica, por fim eis que chega meu marido, um chef de tirar o chapéu... capaz de fazer qualquer prato salgado com maestria. Sua especialidade? Frutos do mar, culinária japonesa, carne de porco, peixes, molhos, massas, churrasco... e por aí vai.
Minha avó, "dona Diva": uma grande inspiração |
Estou longe, porém, de ser uma exímia cozinheira. Nem tenho pretensões de me tornar uma. Mas gosto verdadeiramente do ofício e entendo um pouquinho do assunto (só um pouquinho). Além de apreciar um bom prato, meu prazer está em preparar e servir. Reunir amigos e pessoas queridas em torno de boa mesa, numa conversa agradável, regada por um vinho de excelência é para mim a consagração da vida, um momento de extrema alegria e prazer.
Por isso, convido a todos a participar comigo deste incrível barato que será para mim, uma jornalista por formação, escrever sobre as minhas grandes paixões: elaborar, experimentar, reunir e, acima de tudo, compartilhar. Sejam todos muito bem vindos. E, claro, sintam-se em casa. Ou melhor, sintam-se na cozinha!
Soraia Kalil